Por dois mil anos o
Ocidente viveu sob o advento do cristianismo uma espiritualidade patriarcal,
onde a face de Deus era percebida como masculina. Um dos ícones emblemáticos de
uma imagem de Deus masculino no imaginário cristão é o afresco pintado por
Michelângelo na Capela Sistina, intitulado “A criação de Adão”. Nele, Deus é representado como um ancião
grisalho, que cria o ser humano, representado também por um indivíduo do sexo
masculino.
Além do Cristianismo, outras
religiões do livro como o Judaísmo e o Islamismo são fortemente patriarcais. Por
serem as religiões dominantes em uma parte considerável da superfície da Terra,
essas espiritualidades e suas formas de ver o mundo eclipsaram outras
cosmologias cujo foco no sagrado feminino está mais presente.
Desde o final do século XIX tem acontecido o
resgate do elemento feminino na espiritualidade Ocidental, suscitado por
diversos movimentos religiosos espiritualistas, que a partir da década de 1960
ficaram conhecidos como Nova Era. Entre estes movimentos um dos mais destacados
é o neopaganismo.
O neopaganismo surge em
diferentes países da Europa durante o século XIX com a proposta de resgate de
uma religião de culto à Natureza, que teria existido na Europa antes do
cristianismo (Duarte, 2008). Impressionados por obras como a da arqueóloga
Margareth Murray e do Antropólogo James Frazer, pensadores místicos e
esotéricos começaram a esboçar uma religião da Deusa, batizada por Gerald
Gardner na década de 1950 de Wicca. Nos anos de 1960 essa espiritualidade
neopagã se encontrou com o movimento jovem da Contracultura, na Califórnia, onde
surgiu a Wicca Diânica, ou feminista.
A Wicca Diânica propõe uma espiritualidade mesclada com
ativismo político, pois pretende resgatar a conexão da mulher com a terra e com
os ciclos da natureza, percebidos como ameaçados pela cultura ocidental. Uma
corrente da Wicca Diânica, denominada Reclaiming
liderada por Starhawk enfatiza particularmente a relação entre Wicca,
feminismo e ecologia:
“Foi nos anos de 1970 que o congresso de
mulheres feministas se reuniu e escolheu a sigla que lançará o feminismo mágico
em um novo ciclo: WITCH. Para as mulheres que começaram a usar a palavra witch como designação e arquétipo de sua
atitude política, ela oferecia-lhes um modelo de mulher independente, revoltada
e sábia, adicionado ao carisma de martírio da época inquisitorial, irmanando-a
com essa linhagem mítica de mulheres que Jules Michelet inventara como sendo
curandeiras, feiticeiras e herdeiras da velha sabedoria pagã” (Lascarix,
2010).
Paralelamente à ênfase dada
no elemento feminino nas novas religiões surgidas a partir do final do século
XIX, movimentos de reforma da Igreja como a Teologia da Libertação deram ensejo
ao surgimento de uma Teologia Feminista, cuja proposta era resgatar o papel da
mulher na constituição da Igreja Católica, a partir de uma releitura da Bíblia.
No Brasil, além de ser
forte a tradição de culto às santas e nossas senhoras no catolicismo popular,
de matriz ibérica, a espiritualidade africana também possui um culto ao sagrado
feminino. No Candomblé africano haviam sociedades secretas femininas, as
sociedades Gelèdés, onde o culto às ancestrais, as Yá Mí Oxorongás, se dava
cercado de mistério.
Hoje
a espiritualidade de matriz africana é praticada no Brasil em terreiros de
religiões como Candomblé, o Tambor de Mina e a Umbanda. Os terreiros são frequentados
por ambos os sexos, porém em algumas vertentes mais tradicionais apenas a
mulher pode entrar em transe com divindade e liderar a casa de culto (Landes, 2002;
Ferretti, 2009).
As divindades femininas
são muito destacadas no panteão, sendo também muitas vezes sincretizadas com
santas católicas, como ocorre com a orixá Yemanjá, sincretizada com Nossa
Senhora da Conceição ou com Nossa Senhora das Candeias, dependendo da região do
Brasil.
Na atualidade, diversas
religiosidades cujo foco é o resgate do sagrado feminino possuem forte
afinidade com discursos políticos feministas e ecológicos. Desde as praticantes
da Wicca diânica na Califórnia que elegeram o resgate da figura da bruxa como
símbolo emblemático da emancipação da mulher (Salomonsen, 2002), antes sob o julgo
do patriarcado, até as mães de santo, sacerdotisas do Candomblé africano
praticado em Salvador, Brasil (Landes, 2002), existem muitas religiões onde a
mulher é a figura principal.
Referências
FERRETI,
Sérgio. Querebentã de Zomadonu. Etnografia da Casa das Minas do
Maranhão. 3ª. Ed. Rio de Janeiro:
Pallas, 2009.
LANDES,
Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002.
LASCARIZ,
Gilberto de. Ritos e Mistérios Secretos
do Wicca. Um estudo esotérico do Wicca tradicional. São Paulo: Madras,
2010.
SALOMONSEN,
Jone. Enchanted Feminism. The reclaim witches from San Francisco. London and
New York: Routledge, 2002
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