segunda-feira, 9 de março de 2015

O sagrado feminino

Por dois mil anos o Ocidente viveu sob o advento do cristianismo uma espiritualidade patriarcal, onde a face de Deus era percebida como masculina. Um dos ícones emblemáticos de uma imagem de Deus masculino no imaginário cristão é o afresco pintado por Michelângelo na Capela Sistina, intitulado “A criação de Adão”.  Nele, Deus é representado como um ancião grisalho, que cria o ser humano, representado também por um indivíduo do sexo masculino.
Além do Cristianismo, outras religiões do livro como o Judaísmo e o Islamismo são fortemente patriarcais. Por serem as religiões dominantes em uma parte considerável da superfície da Terra, essas espiritualidades e suas formas de ver o mundo eclipsaram outras cosmologias cujo foco no sagrado feminino está mais presente.
 Desde o final do século XIX tem acontecido o resgate do elemento feminino na espiritualidade Ocidental, suscitado por diversos movimentos religiosos espiritualistas, que a partir da década de 1960 ficaram conhecidos como Nova Era. Entre estes movimentos um dos mais destacados é o neopaganismo.
O neopaganismo surge em diferentes países da Europa durante o século XIX com a proposta de resgate de uma religião de culto à Natureza, que teria existido na Europa antes do cristianismo (Duarte, 2008). Impressionados por obras como a da arqueóloga Margareth Murray e do Antropólogo James Frazer, pensadores místicos e esotéricos começaram a esboçar uma religião da Deusa, batizada por Gerald Gardner na década de 1950 de Wicca. Nos anos de 1960 essa espiritualidade neopagã se encontrou com o movimento jovem da Contracultura, na Califórnia, onde surgiu a Wicca Diânica, ou feminista.
A Wicca Diânica propõe uma espiritualidade mesclada com ativismo político, pois pretende resgatar a conexão da mulher com a terra e com os ciclos da natureza, percebidos como ameaçados pela cultura ocidental. Uma corrente da Wicca Diânica, denominada Reclaiming liderada por Starhawk enfatiza particularmente a relação entre Wicca, feminismo e ecologia:
“Foi nos anos de 1970 que o congresso de mulheres feministas se reuniu e escolheu a sigla que lançará o feminismo mágico em um novo ciclo: WITCH. Para as mulheres que começaram a usar a palavra witch como designação e arquétipo de sua atitude política, ela oferecia-lhes um modelo de mulher independente, revoltada e sábia, adicionado ao carisma de martírio da época inquisitorial, irmanando-a com essa linhagem mítica de mulheres que Jules Michelet inventara como sendo curandeiras, feiticeiras e herdeiras da velha sabedoria pagã” (Lascarix, 2010). 

Paralelamente à ênfase dada no elemento feminino nas novas religiões surgidas a partir do final do século XIX, movimentos de reforma da Igreja como a Teologia da Libertação deram ensejo ao surgimento de uma Teologia Feminista, cuja proposta era resgatar o papel da mulher na constituição da Igreja Católica, a partir de uma releitura da Bíblia.
No Brasil, além de ser forte a tradição de culto às santas e nossas senhoras no catolicismo popular, de matriz ibérica, a espiritualidade africana também possui um culto ao sagrado feminino. No Candomblé africano haviam sociedades secretas femininas, as sociedades Gelèdés, onde o culto às ancestrais, as Yá Mí Oxorongás, se dava cercado de mistério.
   Hoje a espiritualidade de matriz africana é praticada no Brasil em terreiros de religiões como Candomblé, o Tambor de Mina e a Umbanda. Os terreiros são frequentados por ambos os sexos, porém em algumas vertentes mais tradicionais apenas a mulher pode entrar em transe com divindade e liderar a casa de culto (Landes, 2002; Ferretti, 2009).
As divindades femininas são muito destacadas no panteão, sendo também muitas vezes sincretizadas com santas católicas, como ocorre com a orixá Yemanjá, sincretizada com Nossa Senhora da Conceição ou com Nossa Senhora das Candeias, dependendo da região do Brasil.
Na atualidade, diversas religiosidades cujo foco é o resgate do sagrado feminino possuem forte afinidade com discursos políticos feministas e ecológicos. Desde as praticantes da Wicca diânica na Califórnia que elegeram o resgate da figura da bruxa como símbolo emblemático da emancipação da mulher (Salomonsen, 2002), antes sob o julgo do patriarcado, até as mães de santo, sacerdotisas do Candomblé africano praticado em Salvador, Brasil (Landes, 2002), existem muitas religiões onde a mulher é a figura principal.

Referências
FERRETI, Sérgio. Querebentã de Zomadonu. Etnografia da Casa das Minas do Maranhão. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002.
LASCARIZ, Gilberto de. Ritos e Mistérios Secretos do Wicca. Um estudo esotérico do Wicca tradicional. São Paulo: Madras, 2010.
SALOMONSEN, Jone. Enchanted Feminism. The reclaim witches from San Francisco. London and New York: Routledge, 2002

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